quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Mitificação do Herói


Mitificação do Herói


Na obra Os Lusíadas, do escritor renascentista, o herói da epopeia é apresentado na Proposição (Canto I, est. 1-3), na qual o poeta menciona aqueles que se propõe cantar: "(. ..) o peito ilustre Lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram." A figura do herói épico nacional caracteriza-se, pois, pelos feitos grandiosos, nunca antes realizados por humanos, pela conquista da imortalidade, devido a esses feitos, pela vulnerabilidade dos deuses em relação aos portugueses, num anúncio da ascensão dos homens à condição divina, como acontecerá na Ilha dos Amores, e também pela superação dos heróis das epopeias antigas:"Cesse tudo o que a Musa antiga canta / Que outro valor mais alto se alevanta". 

Na Dedicatória (Canto I, est. 6-18), o poeta dedica o poema a D. Sebastião, reafirmando a natureza histórica do seu canto; com efeito, a epopeia camoniana não apresenta um carácter lendário como acontecera nas epopeias antigas; à obra do poeta luso está subjacente um fundo histórico - a História de Portugal - que irá adquirir a forma de uma narração épica. 

No Consílio dos Deuses no Olimpo (Canto I, est. 19-41), o herói nacional é enaltecido, sobretudo, através da oposição de Baco. Na realidade, o facto de um deus temer que a sua glória seja destruída pelos humanos serve inevitavelmente a construção do herói: "(...) O padre Baco ali não consentia / (...) conhecendo / Que esquecerão seus feitos no Oriente / Se lá passar a Lusitana gente". Com efeito, para além de todo o mérito dos nautas lusos, que é reconhecido por outros deuses (Vénus, Marte, Júpiter, que, no final da reunião, decide que os portugueses seriam ajudados a alcançar "a terra que buscavam"), é o receio de Baco que engrandece a gente lusa, conferindo-lhe um estatuto que culminará com a superação da própria condição humana realizada pelo "bicho da terra tão pequeno”, frágil e impotente perante as forças cósmicas. 

O discurso do Velho do Restelo, ainda que traduza a visão de uma parte dos portugueses, que se opunha à empresa dos Descobrimentos, e a condenação da versão oficial deste empreendimento, pode ler-se como mais um passo na construção do herói nacional. Na realidade, a comparação do ser humano a Prometeu, que roubou o fogo (símbolo da sabedoria) aos deuses e, por isso, foi castigado, e a Ícaro, aquele que voou tão alto que se aproximou do Sol, o que originou a perda das suas asas de cera e a sua morte, constitui, uma vez mais, a negação da pequenez do ser humano através do desejo de alcançar algo aparentemente inatingível, e é o facto de assumir essa vontade que permitirá ao Homem renunciar à passividade e encetar uma busca que o levará à realização das suas capacidades latentes. A vaidade e a cobiça situam-se num plano material e os feitos lusos alcançarão uma dimensão purificada, absoluta, no seu encontro com o universo. É, aliás, para a ambiguidade subjacente à forma de estar do Homem no mundo que remete o verso final do discurso do velho: "Mísera sorte! Estranha condição!", por enfatizar a dicotomia aqui (aliado à passividade) / além (que conduz à "mísera sorte", apesar de funcionar como catalisador das pulsões humanas que levam à práxis). 

Já no Canto V, com o "Fogo-de-Santelmo" e a "Tromba marítima", é o valor da práxis, aliada à experiência da percepção dos fenómenos naturais, que é enfatizado, quando Vasco da Gama, que conta ao rei de Melinde a viagem da armada portuguesa de Lisboa a Melinde, afirma: "Contar-te (...) / Causas do mar, que os homens não emendem”', "Os casos vi (...)". "Vi, claramente visto (...)" e "Eu o vi certamente (...). A repetição da forma verbal "vi" redefine a concepção livresca de saber, ao propor um novo método de captação da realidade, baseado na observação, e liga-se à visão renascentista da génese do conhecimento científico. O herói é, então, progressivamente construído ao longo da epopeia, não apenas pela sua coragem e valentia, mas porque detém um novo saber, adquirido através das suas próprias vivências e, por esse motivo, engrandece o espírito humano. É este também o sentido do episódio do Adamastor, no qual o gigante critica a ousadia do povo luso, por ter penetrado os seus domínios ("Os vedados términos"), fazendo referência à acção constante dos portugueses, o que os levou a fazer "grandes causas", pois "nunca repousa[m)". 

O discurso do Adamastor funciona como um elogio supremo aos nautas que, de início, o ouvem, receosos, escutando as suas acusações, para, progressivamente, questionarem a identidade do monstro, o que revelará a sua vulnerabilidade face aos marinheiros lusos, pois, simbolicamente, este representa o cabo das Tormentas, que os portugueses conseguiram dobrar, pelo que as lágrimas são transferidas para o Adamastor, que se afasta "cum medonho choro", determinando a vitória dos humanos sobre a natureza. 

A chegada à Índia, no Canto VII, é um pretexto para as ilações do poeta sobre a missão de Portugal na História universal, ainda que relacionadas com os ideais cristãos e políticos dominantes na época. 

Mas é na Ilha dos Amores que assistimos à realização daquilo que constitui a essência da epopeia: o poeta torna imortais os feitos do herói nacional, elevando os nautas, que, metonimicamente, representam o povo português, à condição de deuses, pois Vénus "Os Deuses faz descer ao vil terreno / E os humanos subir ao Céu sereno". Os marinheiros unem-se às deusas amorosas, que os recompensam após o seu percurso iniciático, após a superação de todas as provações, num espaço onde encontram o amor, onde as deusas "As mãos alvas lhe davam como esposas"e onde" Divinos os fizeram, sendo humanos", pois esta ilha "Outra cousa não é que as deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada”. E, seguindo a linha de pensamento de acordo com a qual concretiza o carácter épico da sua obra, o poeta deixa um convite à continuidade da acção dos portugueses, apontando-lhes o merecido prémio. 

O mito da Ilha dos Amores surge, assim, como algo que, de facto, não existe, mas que funciona ao nível do inconsciente colectivo, como a realização dos desejos humanos associados ao ideal de uma recompensa merecida, pois o mérito é real. 

Finalmente, no Canto X, a ascensão dos heróis humanos na escala existencial é consumada, quando Tétis mostra a Vasco da Gama a máquina do mundo, constituída por onze esferas; no centro, encontrava-se a Terra, de acordo com a teoria de Ptolomeu, e os quatro elementos. 








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